sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O instinto de pertencer: efeitos e consequências

A necessidade de pertencer é instintiva e condiciona nosso comportamento (1).  

Para garantir o pertencimento reagimos automática e instintivamente a tudo que possa ir contra os condicionamentos impressos pelas normas, regras e valores dos grupos (família, amigos, politica, cultura, religião ...)  que desejamos fazer parte.

Para a parte mais primitiva do nosso cérebro (a reptiliana), colocar em risco nosso pertencimento é o mesmo que colocar em risco nossa vida. Nos períodos iniciais da humanidade se alguém não pertencia a um grupo corria o risco de ser devorado por animais ou tomado como escravo por outro grupo.

Esta necessidade, ou instinto, é condicionada pelo que é considerado certo ou errado, bom ou mau na nossa cultura, família ou grupos que valorizamos e queremos fazer parte (pertencer). 

Nos sentimos "bons", "quentinhos," protegidos e confortáveis quando agimos de acordo estas normas, valores e regras e maus, desconfortáveis e culpados, quando as contrariamos. Para Bert Hellinger, a culpa é necessária para crescer. Segundo ele "Apenas as crianças são inocentes".

Mas vejam: sempre reagiremos instintiva e cegamente, com frequência sem sequer nos dar conta,  ao que contraria o certo e o errado definido pelos nossos grupos. Sempre. É instintivo. O que sim podemos é nos tornar mais conscientes de quando agimos assim e talvez nos responsabilizar por isto e pelo efeito disso em nós, nos outros e no coletivo. Assumindo quando o fazemos. Ah! Estou agindo assim de novo!

Fazemos isto de várias maneiras.

Os preconceitos que sentimos, e muitas vezes expressamos instintivamente em relação "àqueles" que não pensam, falam, atuam, se alimentam ou se vestem como nós, são uma das formas mais comuns. 

Tudo o que instintivamente excluímos, rejeitamos, desqualificamos, olhamos de forma ruim, julgamos, criticamos esta inconscientemente expressando a necessidade mais básica da nossa personalidade: a de pertencer.

Tamanha é a força e o poder desta necessidade que nos sentimos bons, justificados e corretos fazendo isto.  Até mesmos quando  desejamos a morte ou a aniquilação dos que não pensam ou atuam como nós, dos que julgamos "diferentes".

Esta é a forma na qual nossa consciência pessoal fica tranquila de que estamos sendo leais ao grupo e de que temos o "direito" de continuar a pertencer. 

Este comportamento também pode ser percebido  na convivência pessoal onde o " não gosto" pode variar de um olhar condescendente e/ou penalizado de quem que se julga mais conhecedor, mais bem informado, mais inteligente e indo desde o simples afastamento/ distanciamento e podendo escalar até a rejeição explicita, o desprezo, a exclusão, o ódio e o mesmo o desejo de aniquilação, destruição do outro.

O que normalmente não percebemos é que estas atitudes nos afetam profundamente. Atuam sem que percebamos em nossa atmosfera interna e no nosso corpo e afetam, por ressonância, tudo à nossa volta. 

Quando olhamos para alguém de forma ruim nosso corpo, nosso coração, nosso rosto, nossa respiração se contraem, causando profundo desconforto. 

Talvez possa experimentar isto se agora fechar os olhos e, colocando a atenção a atenção no corpo, visualizar diante de você uma pessoa que você não gosta (por qualquer questão: pela forma como se veste, fala, por sua religião, comportamento, posicionamento político, o que seja)  cultural, politica, religiosa, comportamental). Percebe como seu corpo reage? 

Hoje é mal visto ter preconceitos consequentemente muitas vezes vamos ocultar estes julgamentos e criticas para sermos "politicamente corretos"Para Claudia Boatti  quando isto ocorre  “enviamos para o inconsciente o que mora em nós.  Mas continuamos, instintivamente, a julgar. Secretamente ainda achamos que este ou aquele grupo é o certo e é melhor do que aquele.  Está no nosso DNA".

Nossa reação vai ser proporcional ao risco de perder o pertencimento e o medo que este risco vai gerar. À medida que o risco e o medo de perder o pertencimento se elevam aumenta nossa reação e colocamos instintivamente mais barreiras entre nós e os "diferentes". 

Muitas vezes reduzimos o outro ou seu grupo a um rótulo (bandidos, assassinos, corruptos, anarquistas) ou usando termos pejorativos ou desqualificativos para denomina-los. 

O medo é irracional, ilógico e leva a reações imprevisíveis. Por esta razão as pessoas e grupos são cegos e surdos aos argumentos dos diferentes, daqueles que, por  pensarem ou agirem de forma diferente, "não pertencem".

Hannah Arendt na sua obra a Banalização do Mal escreve: “os membros fanatizados são intangíveis pela experiência e pelo argumento; a identificação com o movimento e o conformismo total parecem ter destruído a própria capacidade de sentir, mesmo que seja algo tão extremo como a tortura ou o medo da morte".

A crescente agressividade, violência e polarização entre pessoas e grupos que se observa atualmente em diversos ambientes (político, cultural, comportamental só para citar alguns) tem origem na facilidade e rapidez que as redes sociais oferecem para difundir ideias, conceitos, preconceitos os mais diversos.

Atualmente, grupos que pensam de forma diferente ou antagônica encontram nas redes sociais um campo fértil para gerar argumentos impactantes que mais se coadunam com seus valores. Criando, alimentando e difundindo preconceitos e o medo e violência que eles geram. 

A Alemanha da era hitlerista mostrou ao mundo o quanto é fácil converter pessoas às ideias mais desumanas fazendo-as se sentir "boas" mesmo quando desejando a morte de outras ou conduzindo outras à morte. 

Bert Hellinger escreve que apenas a reconciliação é capaz de promover cura e evitar a repetição do que a humanidade vem repetindo há milênios com as exclusões: as guerras e os conflitos.  

Sabendo agora como a necessidade de pertencer atua  podemos nos tornar mais conscientes e responsáveis pelos efeitos e consequências das nossas ações quando agimos instintivamente para defender nosso pertencimento. 

Podemos talvez começar a nos tornar mais responsáveis pelo efeito que isto provoca em nós, nos outros e em toda a sociedade. 

Um desafio imenso que exige muita disciplina interior. 

Nas palavras de Brigitte Champetier de Ribes "amar aos bons é fácil" o desafio é amar aos difíceis, os considerados maus.

Marcia Assá Paciornik